Wednesday, October 25, 2006

Monday, October 23, 2006

HERING OU FRANCISCO
Formavam um belo casal. Nascido no Rio Grande do Sul, Brasil. Ele corretor imobiliário e ela professora da faculdade de letras. Os primeiros anos de casamento foram repletos de felicidades. Em termos financeiros, levavam uma vida folgada para os padrões de classe média. Ele, sempre que tinha oportunidade, declarava-se ateu, como que gostasse de chocar as pessoas da cidade.
Com o nascimento do primeiro filho, que terminou sendo o único, a sogra tentou convencê-lo a colocar o nome da criança de Francisco, em razão do menino ter vindo ao mundo em 04 de outubro, dia do aniversário do taumaturgo. Esse foi mais um dos motivos que levou a discórdia entre genro e sogra e que perdurou pelo resto de suas vidas. Na verdade, o menino recebeu o nome de Hering Straus de Albuquerque, como convinha aos descendentes alemães, de onde deitavam as raízes familiares do pai do garoto.
É fato que, por essa época, o país entrou em uma crise econômica motivada pela alta taxa de inflação, e o setor imobiliário foi um dos mais afetados pela ausência de transações comerciais. Com a refração do mercado da construção civil e a fuga de clientes, a crise financeira ingressou no lar dos ‘Straus’.
Vale mencionar que, desde o namoro, o corretor tinha ciúmes de sua bonita esposa. A questão financeira somente veio agravar o relacionamento do casal, fazendo com que o pai de Hering ingerisse, cada vez mais, bebida alcoólica.
Uma noite, depois que ela demorou um pouco em seu retorno da faculdade, eles discutiram acirradamente e foram às agressões físicas. Ao revidar uma bofetada, ela jogou a mão no rosto do marido, ferindo-lhe através das unhas. Ele, descontrolado emocionalmente, sacou do revólver e atirou na esposa, que caiu desfalecida. Ao constatar que havia assassinado a própria mulher, não teve dúvida, apontou a arma para sua cabeça e disparou, morrendo instantaneamente, na frente do filho, de quatro anos.
A cidade foi abalada com a notícia da tragédia. A guarda da criança foi entregue aos avós maternos por determinação judicial. O menino, que estava matriculado no colégio Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, ficou assistido pela psicóloga educacional daquele estabelecimento de ensino, conforme sentença prolatada pelo juiz da comarca.
Em seu primeiro dia de aula, a professora do Jardim de Infância disse que iria apresentar, a todos da sala, retratos de pessoas que ela qualificava de muita importância para o conhecimento dos alunos. Caso eles soubessem de quem era os nomes das figuras que ela estava mostrando, eles podiam levantar a mão e falar. E a professorinha passou a levantar algumas fotografias de políticos, artistas de televisão, escritores e de santos. Ao erguer o quadro de São Francisco, Hering gritou, ecoando por toda a sala:
_ Professora, esse eu conheço: foi ele que me segurou no colo quando o papai atirou em mamãe e depois atirou em sua própria cabeça.

* * *

A CARA DE DEUS
Cabelo despenteado e mãos sujas de quem concerta rádio, televisão e outros eletrodomésticos, sem cobrar um centavo pelo serviço. Esse era o jeito de Edgar. Até em computador ele quebrava uns galhos. Serviço não lhe faltava. Vez por outra, o freguês lhe dava uns trocados.
Duas vezes ao ano, seu pai o levava à capital para consultas médicas. Comentavam na cidade que ele era doente mental. Apesar de ser inteligente, não conseguiu terminar o primário, pois não suportava ficar na sala de aula. Quando sofria com dores de cabeça, refugiava-se em seu quarto por vários dias.
Na cidade, todos sabiam que ele tivera um estranho sonho. Garantia ter visto Deus e ficou apavorado. Se as pessoas lhe perguntassem como era a cara de Deus, ele ruborizava, gaguejava, chorava e saía correndo. Meninos, velhos, donas-de-casa e, principalmente, a turma de sua geração, ao lhe ver daquela maneira, gritavam: “Como é a cara de Deus, Edgar?” Aí ele se desesperava e corria ainda mais até sair da cidade e os gritos cessarem. Então voltava e se enfurnava dentro de casa.
O vigário implorava nos sermões dominicais para ninguém aperreá-lo. O delegado ameaçava de prisão quem o insultasse. O juiz declarou que, dependendo da expressão usada contra Edgar, a pessoa estaria passível de ser processada por calúnia, difamação ou injúria. Qual o quê! Era só ele dar uma volta pelo mercado público que a multidão ia à desforra, detratando-o com apelidos e mangofas. Enquanto não o fizessem correr em disparada, a molecada não se contentava. Nesses momentos, ele ficava nervoso, se agoniava, rasgava a camisa e ganhava a estrada em alta velocidade. A população gargalhava enquanto Edgar, mais uma vez, se recolhia.
“Procure um desenhista e descreva seu sonho. Quem sabe, você tira esse peso dos ombros”, disse-lhe uma moça. Ele encontrou vários artistas, porém nenhum conseguiu retratar a face de Deus. Ao contrário, os desenhos saíam completamente diferentes do que ele havia descrito. Em casa, os destruía.
Passou a fazer consultas médicas com mais freqüência e aparentava um melhor controle emocional. Não satisfeito com os desenhos, decidiu que iria fazer o rosto de Deus. Montou um verdadeiro ateliê em seu quarto, com tintas, pincéis, telas, lápis etc. Lá ficou trancado durante três dias, em jejum, com direito apenas a beber água. Edgar era mesmo esquisito. Ninguém devia o interromper, foi o pedido que fez a sua mãe, cumprido à risca.
A notícia de que ele estava fechado no quarto, desenhando o próprio Deus, espalhou-se pela cidade. As pessoas sabiam que, no final do terceiro dia, ele iria sair de seu cativeiro e mostrar a obra para quem quisesse ver. A expectativa era grande e quase todas as pessoas da cidade o aguardavam, em frente a sua residência.
Às seis horas da tarde em ponto, ele abriu a porta do quarto. Estava pálido, mas o semblante era de ternura. Pela primeira vez seu sorriso foi visto. Carregava a tela, coberta por um lençol. Pediu paciência à multidão e foi à calçada para que todos pudessem ver sua obra de arte, afinal, tratava-se da cara de Deus.
Segurando a tela, pediu um minuto para dar uma pequena explicação: “Minha gente, antes de tudo, agradeço a paciência que vocês tiveram comigo ao longo de minha vida. Quero dizer que, ao concluir este desenho, acabei curado. Sinto isso em meu coração”. Alguém gritou “Edgar, deixa de onda e mostra a cara de Deus”. Subitamente, ele puxou o lençol e, para espanto geral, estava gravado na tela o rosto de um homem simples, de barba rala, feio e pobre. As pessoas não sabiam se riam ou se choravam, tal era o espanto.

* * *
COSTAS SANGRADAS
Sou pescador, aprendi com meu pai. Acordo de madrugada, lanço o barco no mar e volto no final da tarde, às vezes com muito peixe, outras, nem tanto. Da vida, nunca me queixei. Sempre soube que, para o sustento da família, o mar não nega sua serventia.
No ardor da juventude, jamais temi temporal. Não imaginei ter que passar pela tragédia de perder um irmão, em plena fúria das ondas. O encantamento de Antônio e a impotência de não poder salvá-lo me deixou com uma espinha cravada no coração.
O ano era de inverno pesado. À noite chovia torrencialmente. Antes de o galo cantar, o vento forte prenunciava perigo. Nessas horas meu espírito de aventura predominava e desafiei meus companheiros à pescaria, ninguém aceitou. Antônio, que morava parede de meia comigo, ao me ver tomado de teimosia, me acompanhou por puro instinto de proteção, como era de seu costume.
Tudo aconteceu a uns mil metros da praia. As ondas estavam agigantadas, o vento, enlouquecido e as nuvens, escuras. Trovões e raios caíam como castigo em cima do barco. De súbito, o céu se rasgou, o mar gemeu e uma claridade assustadora se fez presente. Logo o barco virou e o mastro bateu nas costas e na cabeça de Antônio. Fui jogado à distância e, por pouco, não morri afogado. Gritei em desespero quando não consegui ver meu irmão. Cheguei na praia sem Antônio e sem barco. Preferi ter morrido. Só não foi pior porque me lembrei de que havia meus filhos e sobrinhos para serem criados. Sem coragem, virei um trapo humano entregue à cachaça. Não fosse a solidariedade de minha família e amigos, os meninos teriam passado fome. Foi aí que me agarrei com São Francisco.
Além de irmão, Antônio foi um verdadeiro amigo. A primeira surra que meu pai lhe deu foi por minha culpa. Suas costas chegaram a sangrar de tantas chicotadas. Por ser mais velho, ele estava sempre ao meu lado. Muitas vezes, nos comunicávamos sem usar a fala, bastava cruzar os olhos ou iscar o pensamento em sua direção.
Um ano depois do acidente, fui pagar a promessa. Caminhei cerca de duzentos quilômetros da Prainha até a Basílica de São Francisco, em Canindé. Minha mulher me acompanhou durante o trajeto e diz que chorei a maior parte do tempo. Senti um grande vazio no peito e, ao mesmo tempo, descobri o sentido da vida. A saudade de Antônio desabava em mim e não havia como controlar as lágrimas.
Ao cabo de três dias, estava no pátio da igreja pronto para ajustar as contas com o santo. Era quatro de outubro, mês das festas de São Francisco. Faltavam trinta minutos para o meio dia. A igreja estava lotada e a missa começaria às doze horas. Tirei a camisa, amarrei meus pés com uma corda, deitei as costas nuas sobre o cimento quente e mandei Bárbara me arrastar em redor da igreja. As pessoas estavam espantadas e queriam ver minhas costas sangrando. Em certos momentos, foi preciso pedir para os curiosos saírem do caminho. O tumulto acabou quando a volta completou-se em frente à porta principal. Desamarrei os pés e me levantei. Bárbara enxugou minhas costas com um lenço, vesti a camisa e fui assistir à missa. Lembro que estava fraco e que continuei a chorar.
Ao final do ato religioso, o calor, a sede e a falta de ar deixavam-me um pouco tonto. Saí da igreja e uma multidão me aguardava do lado de fora, alguém tirou minha camisa e não havia mais vestígios de sangue e nem arranhões.